Repórter – Parece-me que o doutor toca alaúde...
Lutero – Toco alaúde há muitos anos. Aprendi sem professor, enquanto me recuperava de uns ferimentos. É um instrumento muito antigo. Surgiu na Mesopotâmia, lá pelo ano 2.000 a.C. Os levitas do templo de Jerusalém tocavam alaúde. Dizem que ele chegou à Europa durante as Cruzadas ou quando da conquista da Espanha pelos mouros. Tornou-se um instrumento musical muito popular hoje em dia. Existem dois ou três modelos diferentes. A caixa de ressonância tem formato de pêra. O meu tem seis pares de cordas. Com a mão direita eu dedilho e com a mão esquerda retenho as cordas.
Repórter – O doutor conhece música?
Lutero – Eu cresci cercado de música. Na infância cantava os hinos dos mineiros, pois meu pai trabalhava numa mina de carvão. Era um menino cantor na escola de Mansfeld, lá pelo ano de 1488. Continuei a cantar no coro da igreja quando fui estudar, primeiro em Magdeburgo e depois em Eisenach. Na Universidade de Erfurt, além de gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria e astronomia, estudei música. Estas são as sete artes liberais. Quando fui para o Convento de Santo Agostinho, em 1505, com 22 anos, aprendi o canto gregoriano. Cantava a voz masculina mais aguda, o tenor.
Repórter – O que o doutor chama de canto gregoriano?
Lutero – É o canto litúrgico introduzido pelo papa Gregório I, aquele homem extraordinário que se dizia servus servorum Dei (servo dos servos de Deus) e que foi papa de 590 a 604. Herdeiro de uma grande fortuna e ex-prefeito de Roma, decidiu-se pela vida monástica aos 35 anos e transformou suas propriedades em monastérios. Foi eleito papa a contragosto aos 50 anos e assentou-se na cadeira de Pedro de 590 a 604, quando morreu.
Repórter – Dizem que o doutor é o “Ambrósio da Reforma”.
Lutero – Nunca ouvi falar isso. Todavia, talvez seja por causa de meu apego à música sacra. Ambrósio era bispo de Milão e nasceu 200 anos antes de Gregório. Ele compôs vários hinos, inclusive o famoso Te Deum, que cantamos até hoje. Foi ele quem batizou Agostinho no ano de 387.
Repórter – Também já li não sei onde que o doutor foi chamado de “O rouxinol de Wittenberg”.
Lutero – Foi Hans Sachs, de Nuremberg, que me deu esse honroso título. Se eu sou o rouxinol de Wittenberg, ele é o rouxinol de Nuremberg, quiçá de toda a Alemanha. Sachs, 11 anos mais novo do que eu, tem sido chamado de “o príncipe e patriarca dos mestres-cantores”. É um profícuo autor de hinos, poemas e peças.
Repórter – O cântico é importante no culto?
Lutero – De suma importância. Desde os tempos de Moisés (Êx 15.1,2; Dt 31.19) e de Davi (1 Cr 6.31). Basta ler o salmo 100: “Prestem culto ao Senhor com alegria; entrem na sua presença com cânticos alegres”. A longa reunião de Jesus com os discípulos no cenáculo, na véspera da morte do Senhor, só terminou com o cântico de um hino (Mt 26.30). Não existe culto sem cânticos.
Repórter – O doutor acabou de mencionar “cânticos alegres”.
Lutero – Você sabe qual é o meu cântico predileto? É o mais antigo hino sacro alemão, conhecido desde o século 13. Chama-se Christ ist erstanden (Cristo ressuscitou). Gosto dele porque, ao contrário dos demais hinos pascais medievais, não fica descrevendo os tormentos de Cristo, mas a centralidade de sua ressurreição. Em cima desse hino e de outro, o Victimae paschali laudes immolent Christiani (Os cristãos ofereçam hinos à vítima pascal), compus o Christ lag in Todesbanden (Cristo estava preso nas amarras da morte), no qual consegui infundir toda a alegria e júbilo que brotam da ressurreição. A primeira estrofe diz: “Cristo estava preso nas amarras da morte, / Entregue por nosso pecado. / Ele ressurgiu novamente / E nos trouxe a vida. / Regozijemo-nos por isso, / Louvemos e demos graças a Deus / E cantemos aleluia”.
Repórter – Canta-se muito aqui em Wittenberg?
Lutero – Em nossos cultos aos domingos e nos dias de semana, nas reuniões matinais e vespertinas, eu entremeio o cântico com as leituras do Antigo e do Novo Testamento, com as orações, com a confissão, com o sermão etc.
Repórter – Há alguma parte do culto a qual o doutor empresta maior relevância?
Lutero – Na minha opinião, em todo o culto, o elemento mais importante é a pregação e o ensino da Palavra de Deus.1 Para reforçar essa ênfase bíblica, transformei em hino os dez mandamentos da lei de Deus. Cantamo-lo pela primeira vez na Quaresma de 1525. O cântico tem 12 estrofes. Na sétima estrofe entoamos: “O matrimônio – escuta bem! / Será santíssimo, e também / A vida casta deve ser, / Disciplinando o viver”. Na décima, enfatizamos: “Proibido estás de cobiçar / Do próximo a mulher e o lar. / O bem que quer teu coração / Também farás a teu irmão”.
Repórter – A igreja canta em latim ou em alemão?
Lutero – Até então cantávamos só em latim. Hoje cantamos em latim e em alemão. Os hinos mais antigos geralmente entoamos em latim. Por exemplo: o Magnificat (o cântico de Maria), o Benedictus (o cântico de Zacarias), o Te Deum laudamus (Senhor, louvamos-te), o Sanctus (baseado no capítulo 6 de Isaías), o Agnus Dei (Cordeiro de Deus), o Quicumque vult salvus esse (Quem quiser salvar-se...) etc. Tenho traduzido alguns hinos latinos para o alemão. É o caso do De profundis (Das profundezas), do Ut timearis (Que sejas temido), Media vita in morte sumus (Em meio à vida, estamos envolvidos pela morte) etc. Não abro mão totalmente dos hinos em latim por amor à juventude, pois desejo que os jovens cresçam aprendendo o latim.
Repórter – Existem hinos em alemão em número suficiente?
Lutero – Essa é a nossa grande luta. O desafio é enorme. Não estou encontrando muita gente capaz de produzir novas letras e novas melodias. Precisamos evitar a rotina. É uma aberração cantar os mesmos cânticos em todas as celebrações.² Os sapatos novos, quando ficam velhos e começam a apertar, não mais usamos; jogamos fora e compramos outros.3 É preciso que haja cantos em alemão suficientes para diferentes ocasiões, como Natal, Páscoa, Pentecostes, São Miguel, Purificação etc.
Repórter – O livro de Salmos insiste nisso: “Cantem ao Senhor um novo cântico, pois Ele fez coisas maravilhosas” (Sl 98.1).
Lutero – Para que os não-cristãos se tornem cristãos precisamos fazer muita coisa. A gente simples, a juventude deve ser treinada e educada diariamente na Palavra de Deus, para se habituar com as Escrituras, para saber manuseá-las, para ser versada e instruída nelas, para defender sua fé e, com o tempo, ensinar os outros e contribuir para o avanço do reino de Cristo. Por causa dessas pessoas é preciso ler, cantar, pregar e compor hinos.4
Repórter – Fui informado de que o doutor escreveu 137 hinos.
Lutero – Não é verdade. O pessoal sempre exagera. Compus apenas 36 cânticos. Assim mesmo só dez são inteiramente originais. Os exagerados tinham a intenção de me comparar com Davi, que deve ter escrito — quem sabe — 137 dos 150 salmos. Quase todas as minhas composições foram produzidas em 1524. A primeira foi em agosto de 1523, um mês depois do trágico acontecimento que serviu de inspiração. Trata-se do Ein hübsch Lied von den zwei Märtyrern Christi, zu Brüssel von den Sophisten zu Löwen verbrandt (Um belo hino dos dois mártires de Cristo, queimados em Bruxelas pelos sofistas de Lovaina). O hino tem dez estrofes e conta a morte de dois monges agostinianos do Convento da Antuérpia que abraçaram a Reforma. Eles foram lançados à fogueira na praça do mercado de Bruxelas no dia 1º de julho de 1523. Chamavam-se Henrique Voes e João von Eschen. Já na primeira estrofe entro diretamente no assunto: “Um canto novo vou entoar, / Que Deus nos dê sua graça; / Dos feitos dele vou cantar, / Que em sua glória o faça! / Bruxelas foi que o presenciou: / Por meio de dois moços / O seu poder ali mostrou, / Que com seus dons divinos / Dotou ricamente”.
Repórter – Foi o doutor que escreveu o hino fúnebre Nun lasset uns den Leib begraben (Sepultemos agora o corpo)?
Lutero – Esse hino leva o meu nome, embora não seja meu. O equívoco precisa ser corrigido, não porque eu o rejeite, uma vez que me agrada muito. O verdadeiro autor é João Weis.
Repórter – Alguém me disse que o doutor modificou a letra de um hino de duzentos anos atrás, ao traduzi-lo para o alemão.
Lutero – Deve ser aquele ao qual dei o título de Gott der Vater wohn uns bei (Deus, o Pai, seja conosco). De fato, onde estava Santa Maria ou Virgem Maria, eu coloquei o nome de Deus. Estava escrito: “Santa Maria, socorre-nos / Se tivermos que morrer. / Livra-nos de todos os pecados / E não nos deixes perecer.” Modifiquei para: “Deus e Pai, sejas conosco / E não nos deixes perecer! / Livra-nos de todos os pecados / E concede-nos uma morte bem-aventurada!”
Repórter – Também ouvi falar que o papa está mais irritado com seus hinos do que com as 95 teses que o doutor afixou à porte da igreja do Castelo em 1517.
Lutero – Deus permita que a nossa hinologia redunde em grande prejuízo ao papa romano, que não faz senão causar choro, pesar e sofrimento em todo mundo por meio de suas malditas, insuportáveis e execráveis leis. Amém.5
Repórter – Aquela ilustração dos sapatos velhos que o doutor citou há pouco, me deixou com a pulga atrás da orelha. O doutor jogou fora os hinos tradicionais?
Lutero – Claro que não. Não abominei o canto medieval nem a música latina. Como jogaria fora o meu mais querido hino de Natal, o Jesu nate in Bethlehem (Ó Jesus, nascido em Belém), o adorável Komm, Heiliger Geist, Herre Gott (Vem, Espírito Santo, Senhor Deus), o famoso Agnus Dei (Cordeiro de Deus) e o já citado Christ ist erstanden (Cristo ressuscitou)? Meu esforço é duplo: reter o que é bom e antigo e valorizar o que é novo. Às vezes há muita coisa podre e fria na música tradicional, e muita coisa carnal nas modernas canções de amor. Afinal, não queremos que o espírito dos fiéis morra de tédio na igreja.6 Precisamos de escolher o melhor e tomar cuidado com o excesso tanto da repetição como da variedade e quantidade de cânticos. Valorizo muito a música contemporânea. Sou fã do compositor Ludovico Senfl, cantor da capela palatina do imperador Maximiniano e principal mestre de canto polifônico alemão. Tenho dito que ele é um músico ornatum et donatum a Deo meo, isto é, ornado e agraciado pelo meu Deus.
Repórter – Já existe um hinário a serviço da igreja?
Lutero – A princípio distribuíamos os hinos em folhas avulsas. Seu uso, porém, cedo requereu a junção de todas as folhas. Daí surgiu o Pequeno Hinário Espiritual, em 1524, com 32 hinos alemães e cinco latinos. O hinário continha letra e música, para forçar o povo a aprender música. Creio que se Davi ressuscitasse dos mortos, ficaria admirado de quão longe chegaram as pessoas com a música.
Repórter – O seu notável Ein feste Burg ist unser Gott (Castelo forte é o nosso Deus) está no hinário de 1524?
Lutero – Não. Aparece na edição de 1528. Escrevi esse hino, cujo título em latim é Deus noster refugium et virtus, inspirado na convicção do salmista de que “Deus é o nosso refúgio e a nossa fortaleza, auxílio sempre presente na adversidade” (Sl 46.1). Em seu poema, o salmista declara: “Não temeremos ainda que a terra trema e os montes afundem no coração do mar”. E no meu cântico eu reafirmo: “Ainda que este mundo, repleto de demônios, ameace destruir-nos, não temeremos, pois Deus quer que a sua verdade triunfe por meio de nós”. A letra e a música desse hino têm tido uma boa aceitação.
Notas
1.Martinho Lutero — Obras Selecionadas. vol. 7. p. 182 e 176.
2.Idem. p. 302.
3.Idem. p. 205.
4.Idem. p. 160 e 171.
5.Idem. p. 178.
6.Idem. p. 482.
Bibliografia
HORTA, Luiz Paulo (ed.). Dicionário de Música. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1985.
LESSA, Vicente Themudo. Lutero. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1960.
Martinho Lutero — Obras Selecionadas. v. 7. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 2000. Setembro-Outubro 2005)
- (Imagem; Pintura: G.A. Spangenberg – 1866 - Lutero tocando alaúde com seus filhos sob o olhar de Melanchthon e da esposa Catarina)