sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Lutero e a Música

Repórter – Parece-me que o doutor toca alaúde...

Lutero – Toco alaúde há muitos anos. Aprendi sem professor, enquanto me recuperava de uns ferimentos. É um instrumento muito antigo. Surgiu na Mesopotâmia, lá pelo ano 2.000 a.C. Os levitas do templo de Jerusalém tocavam alaúde. Dizem que ele chegou à Europa durante as Cruzadas ou quando da conquista da Espanha pelos mouros. Tornou-se um instrumento musical muito popular hoje em dia. Existem dois ou três modelos diferentes. A caixa de ressonância tem formato de pêra. O meu tem seis pares de cordas. Com a mão direita eu dedilho e com a mão esquerda retenho as cordas.

Repórter – O doutor conhece música?

Lutero – Eu cresci cercado de música. Na infância cantava os hinos dos mineiros, pois meu pai trabalhava numa mina de carvão. Era um menino cantor na escola de Mansfeld, lá pelo ano de 1488. Continuei a cantar no coro da igreja quando fui estudar, primeiro em Magdeburgo e depois em Eisenach. Na Universidade de Erfurt, além de gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria e astronomia, estudei música. Estas são as sete artes liberais. Quando fui para o Convento de Santo Agostinho, em 1505, com 22 anos, aprendi o canto gregoriano. Cantava a voz masculina mais aguda, o tenor.

Repórter – O que o doutor chama de canto gregoriano?

Lutero – É o canto litúrgico introduzido pelo papa Gregório I, aquele homem extraordinário que se dizia servus servorum Dei (servo dos servos de Deus) e que foi papa de 590 a 604. Herdeiro de uma grande fortuna e ex-prefeito de Roma, decidiu-se pela vida monástica aos 35 anos e transformou suas propriedades em monastérios. Foi eleito papa a contragosto aos 50 anos e assentou-se na cadeira de Pedro de 590 a 604, quando morreu.

Repórter – Dizem que o doutor é o “Ambrósio da Reforma”.

Lutero – Nunca ouvi falar isso. Todavia, talvez seja por causa de meu apego à música sacra. Ambrósio era bispo de Milão e nasceu 200 anos antes de Gregório. Ele compôs vários hinos, inclusive o famoso Te Deum, que cantamos até hoje. Foi ele quem batizou Agostinho no ano de 387.

Repórter – Também já li não sei onde que o doutor foi chamado de “O rouxinol de Wittenberg”.

Lutero – Foi Hans Sachs, de Nuremberg, que me deu esse honroso título. Se eu sou o rouxinol de Wittenberg, ele é o rouxinol de Nuremberg, quiçá de toda a Alemanha. Sachs, 11 anos mais novo do que eu, tem sido chamado de “o príncipe e patriarca dos mestres-cantores”. É um profícuo autor de hinos, poemas e peças.

Repórter – O cântico é importante no culto?

Lutero – De suma importância. Desde os tempos de Moisés (Êx 15.1,2; Dt 31.19) e de Davi (1 Cr 6.31). Basta ler o salmo 100: “Prestem culto ao Senhor com alegria; entrem na sua presença com cânticos alegres”. A longa reunião de Jesus com os discípulos no cenáculo, na véspera da morte do Senhor, só terminou com o cântico de um hino (Mt 26.30). Não existe culto sem cânticos.

Repórter – O doutor acabou de mencionar “cânticos alegres”.

Lutero – Você sabe qual é o meu cântico predileto? É o mais antigo hino sacro alemão, conhecido desde o século 13. Chama-se Christ ist erstanden (Cristo ressuscitou). Gosto dele porque, ao contrário dos demais hinos pascais medievais, não fica descrevendo os tormentos de Cristo, mas a centralidade de sua ressurreição. Em cima desse hino e de outro, o Victimae paschali laudes immolent Christiani (Os cristãos ofereçam hinos à vítima pascal), compus o Christ lag in Todesbanden (Cristo estava preso nas amarras da morte), no qual consegui infundir toda a alegria e júbilo que brotam da ressurreição. A primeira estrofe diz: “Cristo estava preso nas amarras da morte, / Entregue por nosso pecado. / Ele ressurgiu novamente / E nos trouxe a vida. / Regozijemo-nos por isso, / Louvemos e demos graças a Deus / E cantemos aleluia”.

Repórter – Canta-se muito aqui em Wittenberg?

Lutero – Em nossos cultos aos domingos e nos dias de semana, nas reuniões matinais e vespertinas, eu entremeio o cântico com as leituras do Antigo e do Novo Testamento, com as orações, com a confissão, com o sermão etc.

Repórter – Há alguma parte do culto a qual o doutor empresta maior relevância?

Lutero – Na minha opinião, em todo o culto, o elemento mais importante é a pregação e o ensino da Palavra de Deus.1 Para reforçar essa ênfase bíblica, transformei em hino os dez mandamentos da lei de Deus. Cantamo-lo pela primeira vez na Quaresma de 1525. O cântico tem 12 estrofes. Na sétima estrofe entoamos: “O matrimônio – escuta bem! / Será santíssimo, e também / A vida casta deve ser, / Disciplinando o viver”. Na décima, enfatizamos: “Proibido estás de cobiçar / Do próximo a mulher e o lar. / O bem que quer teu coração / Também farás a teu irmão”.

Repórter – A igreja canta em latim ou em alemão?

Lutero – Até então cantávamos só em latim. Hoje cantamos em latim e em alemão. Os hinos mais antigos geralmente entoamos em latim. Por exemplo: o Magnificat (o cântico de Maria), o Benedictus (o cântico de Zacarias), o Te Deum laudamus (Senhor, louvamos-te), o Sanctus (baseado no capítulo 6 de Isaías), o Agnus Dei (Cordeiro de Deus), o Quicumque vult salvus esse (Quem quiser salvar-se...) etc. Tenho traduzido alguns hinos latinos para o alemão. É o caso do De profundis (Das profundezas), do Ut timearis (Que sejas temido), Media vita in morte sumus (Em meio à vida, estamos envolvidos pela morte) etc. Não abro mão totalmente dos hinos em latim por amor à juventude, pois desejo que os jovens cresçam aprendendo o latim.

Repórter – Existem hinos em alemão em número suficiente?

Lutero – Essa é a nossa grande luta. O desafio é enorme. Não estou encontrando muita gente capaz de produzir novas letras e novas melodias. Precisamos evitar a rotina. É uma aberração cantar os mesmos cânticos em todas as celebrações.² Os sapatos novos, quando ficam velhos e começam a apertar, não mais usamos; jogamos fora e compramos outros.3 É preciso que haja cantos em alemão suficientes para diferentes ocasiões, como Natal, Páscoa, Pentecostes, São Miguel, Purificação etc.

Repórter – O livro de Salmos insiste nisso: “Cantem ao Senhor um novo cântico, pois Ele fez coisas maravilhosas” (Sl 98.1).

Lutero – Para que os não-cristãos se tornem cristãos precisamos fazer muita coisa. A gente simples, a juventude deve ser treinada e educada diariamente na Palavra de Deus, para se habituar com as Escrituras, para saber manuseá-las, para ser versada e instruída nelas, para defender sua fé e, com o tempo, ensinar os outros e contribuir para o avanço do reino de Cristo. Por causa dessas pessoas é preciso ler, cantar, pregar e compor hinos.4

Repórter – Fui informado de que o doutor escreveu 137 hinos.

Lutero – Não é verdade. O pessoal sempre exagera. Compus apenas 36 cânticos. Assim mesmo só dez são inteiramente originais. Os exagerados tinham a intenção de me comparar com Davi, que deve ter escrito — quem sabe — 137 dos 150 salmos. Quase todas as minhas composições foram produzidas em 1524. A primeira foi em agosto de 1523, um mês depois do trágico acontecimento que serviu de inspiração. Trata-se do Ein hübsch Lied von den zwei Märtyrern Christi, zu Brüssel von den Sophisten zu Löwen verbrandt (Um belo hino dos dois mártires de Cristo, queimados em Bruxelas pelos sofistas de Lovaina). O hino tem dez estrofes e conta a morte de dois monges agostinianos do Convento da Antuérpia que abraçaram a Reforma. Eles foram lançados à fogueira na praça do mercado de Bruxelas no dia 1º de julho de 1523. Chamavam-se Henrique Voes e João von Eschen. Já na primeira estrofe entro diretamente no assunto: “Um canto novo vou entoar, / Que Deus nos dê sua graça; / Dos feitos dele vou cantar, / Que em sua glória o faça! / Bruxelas foi que o presenciou: / Por meio de dois moços / O seu poder ali mostrou, / Que com seus dons divinos / Dotou ricamente”.

Repórter – Foi o doutor que escreveu o hino fúnebre Nun lasset uns den Leib begraben (Sepultemos agora o corpo)?

Lutero – Esse hino leva o meu nome, embora não seja meu. O equívoco precisa ser corrigido, não porque eu o rejeite, uma vez que me agrada muito. O verdadeiro autor é João Weis.

Repórter – Alguém me disse que o doutor modificou a letra de um hino de duzentos anos atrás, ao traduzi-lo para o alemão.

Lutero – Deve ser aquele ao qual dei o título de Gott der Vater wohn uns bei (Deus, o Pai, seja conosco). De fato, onde estava Santa Maria ou Virgem Maria, eu coloquei o nome de Deus. Estava escrito: “Santa Maria, socorre-nos / Se tivermos que morrer. / Livra-nos de todos os pecados / E não nos deixes perecer.” Modifiquei para: “Deus e Pai, sejas conosco / E não nos deixes perecer! / Livra-nos de todos os pecados / E concede-nos uma morte bem-aventurada!”

Repórter – Também ouvi falar que o papa está mais irritado com seus hinos do que com as 95 teses que o doutor afixou à porte da igreja do Castelo em 1517.

Lutero – Deus permita que a nossa hinologia redunde em grande prejuízo ao papa romano, que não faz senão causar choro, pesar e sofrimento em todo mundo por meio de suas malditas, insuportáveis e execráveis leis. Amém.5

Repórter – Aquela ilustração dos sapatos velhos que o doutor citou há pouco, me deixou com a pulga atrás da orelha. O doutor jogou fora os hinos tradicionais?

Lutero – Claro que não. Não abominei o canto medieval nem a música latina. Como jogaria fora o meu mais querido hino de Natal, o Jesu nate in Bethlehem (Ó Jesus, nascido em Belém), o adorável Komm, Heiliger Geist, Herre Gott (Vem, Espírito Santo, Senhor Deus), o famoso Agnus Dei (Cordeiro de Deus) e o já citado Christ ist erstanden (Cristo ressuscitou)? Meu esforço é duplo: reter o que é bom e antigo e valorizar o que é novo. Às vezes há muita coisa podre e fria na música tradicional, e muita coisa carnal nas modernas canções de amor. Afinal, não queremos que o espírito dos fiéis morra de tédio na igreja.6 Precisamos de escolher o melhor e tomar cuidado com o excesso tanto da repetição como da variedade e quantidade de cânticos. Valorizo muito a música contemporânea. Sou fã do compositor Ludovico Senfl, cantor da capela palatina do imperador Maximiniano e principal mestre de canto polifônico alemão. Tenho dito que ele é um músico ornatum et donatum a Deo meo, isto é, ornado e agraciado pelo meu Deus.

Repórter – Já existe um hinário a serviço da igreja?

Lutero – A princípio distribuíamos os hinos em folhas avulsas. Seu uso, porém, cedo requereu a junção de todas as folhas. Daí surgiu o Pequeno Hinário Espiritual, em 1524, com 32 hinos alemães e cinco latinos. O hinário continha letra e música, para forçar o povo a aprender música. Creio que se Davi ressuscitasse dos mortos, ficaria admirado de quão longe chegaram as pessoas com a música.

Repórter – O seu notável Ein feste Burg ist unser Gott (Castelo forte é o nosso Deus) está no hinário de 1524?

Lutero – Não. Aparece na edição de 1528. Escrevi esse hino, cujo título em latim é Deus noster refugium et virtus, inspirado na convicção do salmista de que “Deus é o nosso refúgio e a nossa fortaleza, auxílio sempre presente na adversidade” (Sl 46.1). Em seu poema, o salmista declara: “Não temeremos ainda que a terra trema e os montes afundem no coração do mar”. E no meu cântico eu reafirmo: “Ainda que este mundo, repleto de demônios, ameace destruir-nos, não temeremos, pois Deus quer que a sua verdade triunfe por meio de nós”. A letra e a música desse hino têm tido uma boa aceitação.

Notas
1.Martinho Lutero — Obras Selecionadas. vol. 7. p. 182 e 176.
2.Idem. p. 302.
3.Idem. p. 205.
4.Idem. p. 160 e 171.
5.Idem. p. 178.
6.Idem. p. 482.

Bibliografia

HORTA, Luiz Paulo (ed.). Dicionário de Música. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1985.
LESSA, Vicente Themudo. Lutero. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1960.
Martinho Lutero — Obras Selecionadas. v. 7. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 2000. Setembro-Outubro 2005)

  • (Imagem; Pintura: G.A. Spangenberg – 1866 - Lutero tocando alaúde com seus filhos sob o olhar de Melanchthon e da esposa Catarina)

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Sempre existirá saída...

Um dia, um menino de 3 anos estava na oficina do pai, vendo-o fazer arreios e selas. Quando crescesse, queria ser igual ao pai. Tentando imita-lo, tomou um instrumento pontudo e começou a bater numa tira de couro. O instrumento escapou da pequena mão, atingindo-lhe o olho esquerdo.

Logo mais, uma infecção atingiu o olho direito e o menino ficou totalmente cego. Mesmo assim aprendeu a ajudar o pai na oficina, trazendo ferramentas e peças de couro. Ia para a escola e todos se admiravam da sua memória. De verdade, ele não estava feliz com seus estudos. Queria ler livros.


Escrever cartas, como os seus colegas. Passava noites acordado, pensando em como resolver o problema. Ouviu falar de um capitão do exército que tinha desenvolvido um método para ler mensagens no escuro. A escrita noturna consistia em conjuntos de pontos e traços em relevo no papel. Os soldados podiam, correndo os dedos sobre os códigos, ler sem precisar de luz..


Ora, se os soldados podiam, os cegos também podiam, pensou o garoto. Procurou o capitão Barbier que lhe mostrou como funcionava o método. Fez uma série de furinhos numa folha de papel, com um furador muito semelhante ao que cegara o pequeno. Noite após noite e dia após dia, Louis trabalhou no sistema de Barbier, fazendo adaptações e aperfeiçoando-o.


Com persistência, Louis Braille foi mostrando seu método. Os meninos do instituto para cegos onde estava morando agora se interessavam. À noite, às escondidas, iam ao seu quarto, para aprender. Finalmente, aos 20 anos de idade, Louis chegou a um alfabeto legível com combinações variadas de um a seis pontos.


O método Braille estava pronto. O sistema permitia também ler e escrever música. A idéia acabou por encontrar aceitação. Semanas antes de morrer, no leito do hospital, Louis disse a um amigo: "Tenho certeza de que minha missão na Terra terminou." Dois dias depois de completar 43 anos, Louis Braille faleceu. Nos anos seguintes à sua morte, o método se espalhou por vários países.


Finalmente, foi aceito como o método oficial de leitura e escrita para aqueles que não enxergam. Assim, os livros puderam fazer parte da vida dos cegos. Tudo graças a um menino imerso em trevas, que dedicou sua vida a fazer luz para enriquecer a sua e a vida de todos os que se encontram privados da visão física.


Há quem use suas limitações como desculpa para não agir nem produzir. No entanto, como tudo deve nos trazer aprendizado, a sabedoria está, justamente, em superar as piores condições e realizar o melhor para si e para os outros.


"Quem você é fala tão alto, que não consigo ouvir o que você está dizendo". (Ralph Waldo Emerson)


Fonte. Recebi por e-mail.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

David Brainerd

"Se tivesse mil vidas, entregaria todas a Cristo." David Brainerd

David Brainerd nasceu a 20 de abril de 1718, no estado de Connecticut, nos Estados Unidos da América. Seu pai se chamava Ezequias Brainerd, um advogado, e sua mãe, Dorothy Hobart, era filha do Pr. Jeremias Hobart. David foi o terceiro filho, de um total de cinco filhos e quatro filhas. Foi um menino de saúde muito frágil, que acabou sendo privado de uma vida social mais dinâmica com outros garotos de sua idade. Sempre teve uma natureza sóbria, e um espírito reservado. Em sua infância, embora preocupado com o destino de sua alma, não sabia o que era conversão. Seu pai morreu quando ele estava com apenas nove anos, e aos catorze anos ele perdeu também sua mãe. Tornou-se ainda mais tristonho e melancólico, e os valores religiosos que recebeu na infância começaram a declinar em sua juventude.

Entretanto, como fruto da obra preveniente da graça divina, Brainerd afastou-se de algumas companhias indesejáveis, e começou a dedicar tempo à oração individual. Começou a ler mais a Bíblia e formou com outros jovens um grupo para encontros dominicais. Começou a dedicar bastante atenção às pregações, e procurava aplicá-las à sua vida. Ainda assim, ele não conhecia a Cristo pessoalmente. Tornou-se ainda mais zeloso no terreno da religiosidade, e sentiu a convicção e o peso do pecado, adquirindo o mais agudo senso do perigo e da ira de Deus. Contudo, suas esperanças ainda não estavam depositadas na justiça de Cristo, mas em si mesmo. Finalmente, o Espírito de Deus o conduziu à fé em Cristo, e ele passou a experimentar o descanso de uma vida justificada, e a ação do poder de Deus em uma Novidade de Vida. Tinha vinte e um anos.

Dois meses depois de sua conversão, Brainerd ingressou na Universidade de Yale. Mesmo num contexto de algumas pressões, ele dedicou bom tempo à comunhão a sós com Deus. As enfermidades, muitas vezes, atrapalhavam seus estudos. Num momento particularmente difícil, ele contraiu tuberculose e expelia sangue pela boca. Ainda assim, ele trabalhou intensamente e obteve distinção como estudante. Porém, quando estava em seu terceiro ano de universidade, teve de deixar a escola devido a uma circunstância bastante delicada. Isso significou um grande desapontamento para ele, pois, mais tarde, no dia em que os outros colavam grau, Brainerd escreveu em seu diário: “Neste dia eu deveria receber meu diploma, mas Deus achou conveniente negar-me isso”.

Foi justamente nesse período que se acentuaram suas preocupações com as almas perdidas. Ele começou a pensar profundamente sobre as pessoas que nunca tinham ouvido falar de Cristo. Chamou-lhe particular atenção a triste condição dos índios norte-americanos. Não havia muitos missionários trabalhando entre eles. Brainerd começou a colocar em prática o seu amor pelos índios, obtendo maiores informações sobre sua realidade e orando freqüentemente por eles. O desejo de levar o Evangelho aos índios foi crescendo em seu coração.

A ocasião surgiu em que Brainerd pôde apresentar-se como missionário aos índios. Sua saúde precária era um fator de preocupação, tendo em vista as condições inóspitas e difíceis que enfrentaria. Seus amigos lhe diziam: “Se Deus quer que você vá, Ele lhe dará forças”. Quando tinha vinte e quatro anos, ele escreveu em seu diário: “Quero esgotar minha vida neste serviço, para a glória de Deus”. No ano seguinte, começou a dedicar sua vida pregando aos índios nas florestas solitárias e frias. Vendeu seus livros e roupas que não usaria, e começou a vida bastante isolada e marcada por uma trajetória de auto-sacrifício e sofrimento. Mas Deus o abençoou ricamente. Como um “grão de trigo que morre ao cair na terra”, Brainerd não ficou só; a morte deste “grão de trigo” produziu muito fruto - tendo tido o privilégio de visitar alguns lugares relacionados à vida de Brainerd, inclusive o local em que ele primeiramente pregou aos índios, fiquei pessoalmente impressionado com o seu caráter e renúncia, fruto da poderosa graça de Deus em sua vida. Freqüentemente, Brainerd ficou exposto ao frio e à fome. Não podia ter o conforto da vida normal. Viajava a pé ou cavalgando por longas distâncias, dia e noite. As viagens eram sempre perigosas. Para atingir algumas tribos distantes, devia passar por montanhas íngremes na escuridão da noite. Atravessou pântanos perigosos, rios de forte correnteza, ou florestas infestadas de animais selvagens. Tinha de viajar quinze a vinte e cinco quilômetros para comprar pão, e, às vezes, antes de comê-lo, o pão estava azedo ou mofado. Dormia sobre um monte de palha que estendia sobre tábuas erguidas um pouco acima do chão. Em muitos momentos estava só, e ficava feliz quando podia contar com seu intérprete para conversar. Não tinha companheiros cristãos com quem pudesse dividir o fardo em momentos de comunhão e oração. “Não tenho nenhum conforto, a não ser o que me vem de Deus”, escreveu ele.

Seu ministério tornou-se bem amplo, alcançando índios nos estados norte-americanos de Nova Iorque, Nova Jersey, e ao leste da Pensilvânia. Havendo encontrado os índios em meio a muitas superstições, e recebendo muitas vezes os efeitos da fúria de seus sacerdotes, Brainerd pôde declarar o poder de Deus acima de todos os deuses. Apesar de todas as dificuldades, era movido por um intenso desejo de contemplar a salvação dos índios. Com isto em vista, aliou, por muitas vezes, o jejum à oração. “Não importa onde ou como vivi, ou por que dificuldades passei, contanto que tenha, desta maneira, conquistado almas para Cristo”, escreveu ele. Boa parte de seu trabalho era feito em lutas físicas, especialmente tendo em vista sua saúde sempre precária, e , como escreveu Edwards, “sua própria constituição e temperamento natural, muito inclinado para a melancolia” – e sobre isto, acrescenta Edwards, “ele excedeu a todas as pessoas melancólicas que conheci”.

O fato é que Deus honrou sobremaneira o ministério de Brainerd. O Espírito de Deus desceu poderosamente sobre os índios, num grande avivamento que afetou tribos inteiras. Por volta de 1745, mesmo os índios que viviam de forma impiedosa, opondo-se à pregação do Evangelho, se convenceram do pecado. Vários se converteram. Muitos brancos, que apareciam por curiosidade para ouvir o que Brainerd dizia aos índios, também foram convertidos. Índios de toda floresta ouviram falar de Brainerd e vinham em grande número ouvi-lo. Era muito comum ouvir os altos brados dos índios pela misericórdia de Deus, toda vez que Brainerd pregava. Seu ministério influenciou também as crianças índias. Ele criou escolas em que elas eram ensinadas a lavrar a terra e a semear, além de receberem os ensinos do Evangelho de Cristo.

Ao escolher o trabalho nas florestas úmidas, Brainerd sabia que não poderia esperar viver muito. Ele assistiu seu corpo definhar, pouco a pouco. Aos vinte e nove anos, foi colocado em seu leito de morte, sofrendo terrível agonia e dor física. Testemunhou de Cristo em seus momentos finais, e anelava por encontrar-se com o Senhor. Ele faleceu em 09 de outubro de 1747, tendo sido sepultado em Northampton, Massachusetts. Jonathan Edwards conduziu o funeral. Foi uma vida curta, mas que glorificou a Deus grandemente.

Edwards, que o conheceu muito bem, podia dizer de Brainerd:

(...) dotado de um gênio penetrante, de pensamento claro, de raciocínio lógico e de julgamento muito exato, como era patente para todos que o conheciam. Possuidor de grande discernimento da natureza humana, perscrutador e judicioso em geral, ele também sobressaía em juízo e conhecimento teológico, e, sobretudo, na religião experimental.

Num artigo em 2001, eu escrevi:

David Brainerd é um exemplo de alguém que resolveu colocar sua vida no altar (...) As privações, o trabalho incansável, as intempéries consumiram o seu vigor. Uma prolongada enfermidade ceifou sua vida. Devido à sua fragilidade física e aos rigores do campo missionário, ele contraiu tuberculose. Brainerd calculou o preço do seguir a Cristo e deliberadamente fez uma escolha que significava separar-se do mundo civilizado, com suas vantagens, e associar-se à dureza, ao trabalho e, possivelmente, a uma morte prematura e solitária. Entretanto, homens como William Carey, Henry Martyn, Robert Mürray McCheyne, John Wesley, Jonathan Edwards, Charles Spurgeon, Oswald Smith, Jim Elliot, citando apenas alguns, testemunharam a grande influência da biografia de Brainerd em suas vidas. Um biógrafo de Brainerd diz que ele “foi como uma vela que, na medida em que se consumia, transmitia luz àqueles que estavam em trevas”.

Algo muito importante que Brainerd fez foi escrever um diário, no qual registrou as experiências que lhe surgiram. Neste diário, editado por Jonathan Edwards, Brainerd faz uma breve explanação de sua infância e juventude, e começa a narrar-nos os fatos, escrevendo periodicamente a partir de 18 de outubro de 1840. Ainda que Brainerd tenha lutado quase que “invencivelmente” contra a publicação de qualquer porção de seu diário, este, publicado depois de sua morte, tem sido um instrumento de Deus para influenciar a vida de muitas pessoas. O Diário de David Brainerd foi publicado em português pela Editora FIEL, em 1993.

Fonte: http://www.editorafiel.com.br/artigos_detalhes.php?id=205